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Três camadas 

Demorou para sair de casa naquela manhã. É verdade que se sentia um pouco ridícula naquelas roupas. Calça social cinza, sapatilha vermelha fedorenta, uma camisa rosa comprada na promoção da Renner. Era o que cabia no salário de estagiária, espremido entre aluguel, comida e uma cerveja no fim do dia. Pelo menos hoje não vai passar pela vergonha do sutiã aparecendo.

Fones de ouvido, um, dois, três ônibus. Hoje na companhia das clássicas. 

“Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão”

Chegou ao prédio espelhado, primeira porta, segunda, bom dia, repetia a recepcionista. Elevador, mesmo que só um andar.

⸺ Ei Oli, bom dia! Nossa, tá bonita com essa roupa, toda arrumada. Nem parece estagiária!

⸺ Bom dia, bom dia, bom dia

⸺ Eita, tá de menininha hoje, Oli? Que aconteceu, até passou batom? Nem parece aquela garota que eu entrevistei. Você nem sabe, mas naquele dia eu falei pro Marcos, vamos ficar com ela, que ela não é tão menininha, cheia de mimimi. Tá aí! Agora veio vestida assim, espero que não mude de atitude também, hem? Tô brincando, tá bonita, chamando atenção! 

Deu uma risada forçada, agradecendo ao elogio, se é que podia chamar assim. 

⸺ Vamos lá na salinha em cinco minutos, vamos rodar aquela apresentação que você me mostrou ontem.

Passou na mesa, deixou a bolsa, pegou o computador. Frio na barriga, hora de apresentar. 

Slide três, o modelo de negócio, breakeven, que premissas são essas, tá certo, faz sentido, muito arriscado, refaz as contas, volta um, isso aí, analisou a concorrência, viram a notícia de hoje, não sei não, muda esse mindset, vamos fazer, a gente faseia o projeto, minimiza os riscos, anota aí Olivia, boa, voltamos a falar em uma semana, parabéns!

“Eu sou pau pra toda obra
Deus dá asas à minha cobra”

⸺ Ótimo material Oli, mas preciso te falar uma coisa e você sabe que eu não tenho muita papa na língua. O Marcos não tirou o olho do seu peito e reunião inteira, são lindos, não me entenda mal, mas fecha mais esse botão porque não tá apropriado. Vem, me dá aqui seu computador, eu deixo na sua mesa, vai no banheiro arrumar.

Olivia olhou-se no espelho. Respirou. Olhos mareados. Um sutiã duro formava a primeira camada, seguida por uma regata preta e, por cima, a camisa rosa recém adquirida. Três botões abertos, um contorno de seio escondido por três camadas de roupa. Fechou até o pescoço.

⸺ Toma, seca essa lágrima. Não tem nada de errado, acredita em mim. Seu telefone não parou de tocar, corre que acho que você vai gostar.

Esboçou um sorriso de obrigada, se olhou uma última vez no espelho. Saiu apressada. O que seria? Desabotoou um botão enquanto ia em direção a sua mesa. 

“Minha força não é bruta
Não sou freira, nem sou puta”

⸺ Oli, tô tentando te ligar, não parou hoje né? Vim te buscar, sobe lá, tem uns minutinhos? Te espero lá no terceiro em cinco. 

Sem tempo para respirar por hoje. Escada, dois andares, salinha do fundo. Ajustou a roupa, bateu baixinho, entrou. Tão rápido, não podia ser verdade. 

O ar saturado, congelado, quente. Se sentia tonta. Não tinha tanta certeza do que as pessoas falavam. O coração pulsava, as lágrimas escorriam, abraçava um, abraçava outro, parabéns, você merece, vai ser um prazer, a gente te espera, obrigada, tô feliz, nem acredito, ufa.

Ufa! Tinha conseguido.

Tinha conseguido!! Primeiro emprego.

Desceu correndo as escadas.

⸺ Que sorriso é esse estagiária? Foi promovida? Mas, já? Pessoal, vem cá, adivinha só quem foi efetivada?

Abraços, parabéns, lágrimas, você merece, nossa, que rápido, você é show, não chora, vamos comemorar, até quando você fica, poxa vai fazer falta. 

⸺ Tá vendo? Aqui é assim, bonitinha é efetivada mais rápido.

Risada coletiva.  

Bonitinha é efetivada mais rápido, bonitinha é efetivada mais…

“Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem”

Banheiro. Abriu os botões da camisa, um a um. Puxou a alça do sutiã, deixando à mostra. Pegou um delineador, ajustou o olhar. 

“Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque”

Agora sim.

Carioca, mulher, engenheira, escritora. Com passagem por muitas terras e influências, busco inspiração e poesia nas esquinas da vida, traduzindo em palavras o cotidiano das relações humanas. Feminista, escrevo em blogs autorais com propósito de mostrar a força e a beleza de ser mulher. Acredito na arte como ferramenta de despertar e mudança.