Psiu, psiu, psiu
Exato, não aguento mais ficar assim Amélia, acabei chamando o pessoal hoje aqui para arrumar logo. Tô aqui esperando na sacada, no meio das minhas plantas que estão lindas, aliás. Às vezes até esqueço que estou no meio de São Paulo, com tanta casa aqui ao redor. Deixa eu colocar no viva voz, vou prender meu cabelo. É, tô sozinha mesmo, eu, minha cerveja de trigo e o som da Liniker.
Pra quem não sabia contar gotas
‘Cê aprendeu a nadar
O mar te cobriu sereno
Planeta marte
Escutou? É, também gostei dessa música. Sim, tô de short, tá trinta e sete graus Amélia, qual a condição de colocar uma calça? Meu pai também falou isso, mas você não acha que é bobeira?
Sabe o que isso me lembra? Um episódio da minha infância, com a minha mãe. Te falei que os amigos dos meus irmãos viviam lá em casa, né? E eu, óbvio, como uma boa caçula amava ficar perto deles. Aí imagina isso, eu tinha uns dez anos e os meninos os seus dezesseis, dezessete. Minha mãe tava fazendo bolo de chocolate, aquele com a calda bem molinha que você gosta, sabe? Então, esse bolo na cozinha de casa e eu tava passando, indo lá para a mesa da churrasqueira do lado de fora. Nisso veio um amigo do meu irmão pegar água, não sei direito, e quando ele saiu da cozinha minha mãe começou a gritar comigo, desesperada.
Pois é, você bem conhece minha mãe, ela não é disso, mas ficou transtornada comigo e eu não entendi absolutamente nada. Me mandou tirar meu short curto e colocar uma calça. Falou que eu não podia ficar vestida daquele jeito no meio dos meninos. Fiquei um tempo no banheiro processando, arrumando a fita no cabelo, pensando se eu deveria voltar ou ficar no meu quarto mesmo. Até chorei. Hoje entendo o porquê. Eu tinha DEZ anos, já pensou?
Tocou aqui, chegaram, vou atender. Fica na linha comigo? Se alguma coisa acontecer você corre aqui… já volto.
Sem ponto, sem virgula, sem meia, descalça
Descascou o medo pra caber coragem
Sem calma, sem nada, sem ar
Pronto, voltei. Estão aqui, disseram que em cinco minutos resolve. Me falaram que eu tenho que pagar, mas no site diz que é gratuito. E ainda disseram que se eu me recusar a pagar não fazem o serviço. Sim, deixei fazer, depois eu entro em contato com a assistência. Não tem condição de continuar sem fogão aqui…trezentos reais, cinco minutos. É, deve ter a ver com a cara de menininha.
Tô aqui na porta, deixei aberta, tô olhando de longe. Qualquer coisa grito. Claro que não, me recuso a trocar de roupa porque vem homem na minha casa e eu tô sozinha, Amélia. Trinta e sete graus, credo. Não sou teimosa, só vale o voto de confiança às vezes, né? Acho que tá tudo bem, já te chamo de novo, segura aí.
Chorou na despedida
Mas gozaram chamas
Amanheceu à guarda de esperar o sono
Desesperou de medo quando ficou tarde
Chamou minha atenção
Oi, voltei. Pronto, finalmente um fogão, nem acredito, juro! Adeus microondas. E adivinha? Ganhei um “short bonito Olivia, onde comprou?”. É, você tinha razão, mas ia acontecer de short ou de burca. Não dá mesmo para confiar.
Num delirante assovio psiu, psiu, psiu