Olivia olhava estonteada.
Era impossível tirar o sorriso dos lábios, que abriam e fechavam acompanhando as melodias. Fazia tempo que não andava por aqueles lados. Era coisa daquele antigo “a gente” e ainda era difícil entender que, independente do término, aquilo também poderia ser coisa somente do “eu”.
O sol queimava entre as partículas de poluição. Por sorte, a pele estava bronzeada e pouco se importava com a exposição de raios UV às duas da tarde. O nariz sim, esse talvez sentisse a diferença do ar puro do isolamento mas que, a bem da verdade, era amenizada pela perfeição do caos sonoro.
Buzina de bicicleta, vendedor de cerveja, água ou qualquer outra coisa, mas sempre bem gelada, latido de cachorro, criança sorrindo, gritando, perdida, cadê a Laura? A mobilização pelo som vinha muitas vezes dos amplificadores mais mequetrefes da Santa Ifigênia, mas que ali encontravam a harmonia no caos.
Era mulher preta no jazz, adolescentes nas danças de k-pop, saudosistas roqueiros cabeludos, voz, violão e plaquinha pedindo uma grana, era comunidade hare krishna, hipnose gratuita, hippies e suas pulseiras da China, aspirantes a hippies e seus quadros de frase engraçadinha. Era jovem, velho, cachorro, tio, sobrinho e, pasmem, até arara. Pois é, em pleno domingo na avenida Paulista.
Voltou a si.
Foco. Hora de encontrar Amélia. Entre a Trianon e a Consolação ela falou, na Banca do Bruno. Vai saber. Um tapetão vermelho Oli, e aí é só plugar a mesa de som, a caixa, o microfone e tá feito. Energia alugo do Bruno, já pedi para ele reservar para mim. Você só precisa ir e, ah, leva a plaquinha para mim, por favor? Só pra eu colocar meu instagram, meu nome, uma piada, sei lá.
Ai Amélia, só você para me fazer vir aqui hoje.
Olivia hesitou. De canto de olho, se viu no reflexo de um daqueles mil prédios espelhados. Suas roupas estavam largas, a camiseta sobrava na altura dos seios – que já não cabiam mais no sutiã tamanho 42- o short, mesmo aquele último vermelho que comprou, sobrava mais de um dedo. Ajeitou o lenço vermelho na cabeça e os óculos escuros estilo navegador. Se sentia mais confortável assim, sem tantas amarras. Continuou.
Cansei de carregar milhões de medos
Das pessoas que me cercam e me pesam de agonia
Um sorriso de saudade. Ah, como Amélia tava linda ali, em meio ao tapete vermelho, almofadas coloridas e aquele seu vestido branco soltinho – o mesmo que tinha usado no ano novo em Alter do Chão. Tão dona de si, do seu microfone e, agora, também do pequeno público que parava por ali, formando uma roda em volta dela.
Passando por trás e se abaixando, Olivia acrescentou ao cenário sua contribuição. A plaquinha @ameliacantora e um chapéu preto. Vai que dá para pagar umas cervejas Oli, não custa tentar. E se você cantasse, ah Oli, vai, só para se divertir. Te espero lá.
Louca. Não sei de onde tirou que eu tenho voz.
Claro, não ia me deixar escapar dessa. E ela me avisou né, não sei porquê desse espanto aqui comigo mesma. Porra Amélia, não, não acredito, precisava me chamar assim na frente de tanta gente? Olhou para os lados, não tinha muito para aonde correr. Bom, nem muito a perder também, afinal de contas. Foi.
Começou com um assovio. O coração acompanhava as batidas na sua cabeça. Flutuava, meio enjoada. Olivia nem sabia muito ao certo o que cantava, para ser bem sincera, mas de uma coisa tinha certeza: aquelas pessoas não continuariam ali. A cerveja seria por conta dela mesma, porque se fosse depender…inclinou a cabeça. Uma moça ruiva colocou uma nota de cinco reais no chapéu, fazendo gesto de ‘mais alto’.
Eu tenho o céu de abril
Pra desentristecer
Serei o que sobrar de mim
Sem nada a perder
Mais cinco de um homem careca, e dez de uma senhora que passeava com a neta.
Eu gosto do gosto da coragem
A melhor viagem é seguir a trilha que eu abri
Uma dupla de amigas deixou uma garrafa de cerveja nos seus pés. Olivia pegou, levou a garrafa a sua frente, brindou, sorriu.
E se perguntarem por mim
Diga que estou ótima
Ana Paula Vilela: Carioca, mulher, engenheira, escritora. Com passagem por muitas terras e influências, busco inspiração e poesia nas esquinas da vida, traduzindo em palavras o cotidiano das relações humanas. Feminista, escrevo em blogs autorais com propósito de mostrar a força e a beleza de ser mulher. Acredito na arte como ferramenta de despertar e mudança.