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Sorri. Vem, dizia a mensagem acompanhada por um enxame de borboletas. No reflexo do espelho, uma última ajeitada nas tranças para o cabelo ficar volumoso. Debruçada na bancada do banheiro, um retoque no rímel para deixar meus olhos pretos ainda mais vivos. Pronto.

Carteira, celular, chave. Saindo, chego em 15, mandei já chamando o elevador. Uber, todos à 10 minutos, droga. É tão perto, dá até um pouco de vergonha não ir a pé.

Será que encaro? A lua tá escondida hoje, vai ter um trecho escuro, eu acho. Não lembro muito bem…mas ele falou que era tranquilo, o bairro é seguro. Tem algum movimento nas casas aqui, acho que esse trecho é ok. Só a escada que, ah, quer saber, vou! Dez minutos, três quarteirões mais cento e sessenta e cinco degraus, só isso. Bom para fortalecer um pouco as pernas, não pode ser tão ruim.

Primeiro quarteirão. Até aqui tudo bem, bem iluminado, trocaram a lâmpada por esses dias. Esquerda, margeando a praça. Um violão no fundo, algumas risadas, pessoal reunido.

A fé ‘tá na maré

Na lâmina de um punhal

Oh oh

Na luz, na escuridão

Andá com fé eu vou

Chegou, primeiro degrau, música ao fundo, escada vazia. E escura, não achava que seria tanto assim. Bom, agora já tô aqui. Celular para iluminar, mas também para ficar no jeito caso alguma coisa aconteça. Como é mesmo a forma de ligar sem desbloque…merda, um homem. De canto de olho, já mapeio: estatura média, boné, barriga de chope. Ele não pode ser tão ágil. Por que não continuei o projeto corrida? Agora teria fôlego caso precise subir mais rápido. Mas não vai ser nada…sessenta e cinco? Já perdi a conta, mas deve faltar uns trinta degraus para chegar na casa que fica no meio do caminho. Lá tem luz.

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma

Ai! Susto, esse latido. O cara deve achar que sou louca. Pelo menos agora ele sabe que tenho voz. Ufa, cheguei, mais da metade do caminho e na casa. Será que deixo o homem passar, finjo que tô parada aqui? Mas tenho uns degraus de vantagem, acho que é coisa da minha cabeça. Bora, continuar entoando Gil. A chave, é a única coisa mais pontuda que tenho. Tiro do bolso da calça e seguro como se fosse minha faca. Ridícula.

Certo ou errado até

A fé vai onde quer que eu vá

Oh oh

A pé ou de avião  

Devia ter vindo de carro, já me resolvia desse nervoso. Minha bexiga tá até apertada, já vou chegar na casa dele como? Suada, sem ar, precisando ir ao banheiro. E ainda perdi tempo arrumando esse emaranhado de tranças…que diferença faz, né?

Cento e vinte acho, pelo menos já vejo o fim. Meu coração parece que vai pular, uns segundos de descanso? Não, melhor não, o homem continua vindo atrás. Achei que ele podia parar na casa, mas parece que terei companhia até o fim. Se não fez nada até agora, não vai acontecer nada. Barulho na mata do lado…acelero o passo, mesmo sem nenhum fôlego.

Cinco, quatro, três, dois, um.

Luz. Aqui os postes fizeram o papel da noite de lua escondida.

Ele me esperava na esquina, com um sorriso e uma garrafa de água.

E aí, tudo bem? Sim sim, tudo bem, mas nossa, você não sabe, além de ficar sem fôlego nessa escadaria sem fim ainda tive que vir cheia de medo. É, um homem tá subindo a escada, veio atrás de mim o caminho todo, deve tá chegando. Deixa eu guardar a chave e o celular aqui na mochila. O que tem o homem? Não, não aconteceu nada, ele não falou nada comigo. Sim, eu já disse que tá tudo bem.

Tomei um ar.

Antes de vir para cá ponderei durante cinco minutos se eu deveria ou não vir a pé. Olhei para minha roupa, não só para ver se eu estava bonita, mas para me perguntar se eu deveria trocar, por segurança. Já passou na sua cabeça trocar de roupa por segurança? Pois é. Pensei se com esse sapato conseguiria correr, se a chave era afiada o suficiente. Lembrei das orações que a minha avó me ensinou, mesmo nem sendo católica, entende?

Vamos andando? Não tô brava, é só que às vezes é estranho ter que explicar o que, para nós, é meio óbvio.    

Que a fé ‘tá na mulher

A fé ‘tá na cobra coral

Oh oh

Andá com fé eu vou

Carioca, mulher, engenheira, escritora. Com passagem por muitas terras e influências, busco inspiração e poesia nas esquinas da vida, traduzindo em palavras o cotidiano das relações humanas. Feminista, escrevo em blogs autorais com propósito de mostrar a força e a beleza de ser mulher. Acredito na arte como ferramenta de despertar e mudança.